O DIA EM QUE O DIA DO JOGO FINAL DA COPA DO MUNDO FICOU MENOS IMPORTANTE DO QUE O DIA DO JOGO DE MIMOSO CONTRA SERTÃNIA, POR MOTIVO JUSTO E ELOGIÁVEL
(Chico Anísio)
— HOJE é contra quem?
— Contra a Itália, Pedro Bó. E se nós ganhar, a Copa do Mundo é nossa.
— Eita!
O rádio não tinha um som agradável. Os ruídos de estática eram fortes e praticamente obrigavam a que se adivinhasse o que dizia o locutor. Mas era a última partida do Brasil na Copa, e mesmo naquela cidade perdida nos confins do sertão havia gente que não se interessava por outra coisa que a transmissão da partida.
— Sou Brasil e dou um gol de zura. . . — falou Pantaleão, usando um termo pernambucano que significava "um de vantagem".
— E eu fico sendo Itália?
— Não, Pedro Bó. Joga Brasil contra a Itália. Se eu sou Brasil, tu só pode ser Sergipe. Pedro Bó, vá pra cozinha e só apareça aqui quando eu chamar.
Pedro Bó explicou-se, desculpou-se, jurou calar-se. Queria escutar o relato do jogo, perguntara aquilo por distração.
O dedo de Pantaleão corria no botão do dial, procurando a emissora que lhe desse o som menos péssimo. Desligou.
— Desligou por que, meu velho?
— Ora, ainda mais essa. Eu, Pantaleão Pereira Peixoto, feito um zé-qualquer, perdendo meu tempo querendo escutar jogo de futebol.
— Mas todo mundo tá escutando — argumentou Dona Terta, ainda sem entender a razão pela qual o marido tomara intempestivamente aquela atitude.
— Todo mundo é todo mundo. Pantaleão é Pantaleão. Se eu não soubesse o que é isso, tá certo; se eu nunca tivesse jogado futebol, vá lá. Mas eu, cabra escolado, jogador como até hoje não apareceu um, perder meu tempo escutando besteira.
— E o senhor já jogou, Seu Pantaleão? — falou Pedro Bó, olho arregalado, surpresa visível na cara.
— Taí. Apareceu um que não sabe. Terta, conta pra Pedro Bó o que eu era num campo de futebol. Diz o que eu fazia. Fala pra ele, Terta.
— Pantaleão era danado — foi o que ela disse.
— Danado é esse menino Pelé. Eu era o diabo!
— Pois eu nem sabia — disse Pedro Bó. — Eu lhe juro por essa luz que eu não sabia.
Talvez houvesse outros a não saber. Mas a verdade era esta: Pantaleão Pereira Peixoto jogara, e divinamente. Nunca foi para a seleção porque. . . bem. . .
— ... eles pagavam mal e eu estava acostumado ao meu ordenado de três mil e quinhentos por mês no Esporte Clube Mimoso, da cidade do mesmo nome. Bola pra mim, Pedro Bó, era feito baralho pra cartomante: não tinha segredo. Eu matava nos peito, chutava de banda, de chaleira. Fazia gol de bico e de cabeça, driblava feito o tinhoso. Pois bom. Um dia o time de Mimoso ia jogar contra o time mais danado do sertão de Pernambuco, que era o time de Sertânia, antiga Alagoa de Baixo, um time dos infernos, onde jogava Cabriolé, um preto deste tamanho que tinha um chute de bico que era mesmo que uma facada nos peitos. Eu naquele dia tinha dormido sem blusa, acordei endefluxado, com uma pontinha de febre, uma tosse seca que só faltava cuspir poeira. Falei: "não vou jogar". Pra que eu falei isso? O presidente, os diretores, o técnico do Mimoso só faltaram se desmanchar de pedido. Não faça isso, Panta — que era assim que os menino me chamavam no campo: Panta. Não faça uma desgraça dessas, Panta, que se você não jogar a gente leva uma lavagem. Jogo não, que eu estou endefluxado. Eu até tossia, mode eles ver que não era conversa. Ah, porque se você não jogar o time não entra em campo, o que é que a gente vai fazer lá sem você? Ô xente. Não tem os outro? Tem, mas tudo junto não é metade de você. Panta, Pantinha, você joga, que você não é capaz dessa malvadeza de deixar o time de Mimoso nessa situação. Pois bom. Tanto pediram, tanto imploraram, que eu resolvi jogar.
— Contra o time de Sertânia?
— Não, Pedro Bó. Contra a Rússia. Tire minhas calça e bote o seu calção furado, que eu não vou lhe dar mais essas calça, não. .
— Faça isso não, Seu Pantaleão. Eu perguntei de leseira. Conte o causo. O senhor foi jogar.
— Pois bom. Pra mim tem duas coisa que eu faço questão que seja justa: é faca na bainha e chuteira no pé. Não é que me deram a chuteira do Pompílio, que calçava 43?
— E o senhor calça quanto?
— 39 e meio, mas sendo 40, eu botando uma palmilha, até fica bonzinho. Pois bom. O meu pé dançava dentro da chuteira. Eu ainda calcei o bico com algodão, pra ver se a bicha ficava mais acochadinha, mas não tinha jeito. Eu disse: "vai assim mesmo; nunca tive luxo, não é agora que eu vou ter". E o jogo era em Sertânia. Campo lotado, não cabia nem pensamento ensebado. Na viagem de Mimoso pra Sertânia o caminhão virou e dois jogador nosso quebraram a perna na altura do joelho. Não tinha outros pra botar no campo, eu já tinha tomado uma duas cachaças valente — que naquele tempo eu bebia que só Buick — falei: a gente joga com nove que não faz mal.
— Nove jogador?
— Não, Pedro Bó. Nove bailarina. E acabou-se a estória.
Pedro Bó teve que ir buscar Pantaleão na estrada, pedir perdão de joelhos para convencê-lo a voltar ao alpendre, à cadeira de balanço, ao restante do causo, que era, realmente, majestoso.
— Pois bom. Entramos em campo, foi uma vaia do cavalo-do-cão. O pessoal do meu time começou a tremer, eu cheguei a um por um e fiz eles se acalmar, o negócio era comigo, eu ia resolver, mesmo estando endefluxado, porque eu estava com uma pontinha de febre, pelo fato de ter dormido sem blusa. Pois bom. Joga o níquel para cima, eu fico de cá, vocês de lá, deram a saída, aquela gritaria do povo, a bola vai pra banda de quem?
— Do senhor.
— Pode me chamar de você, Pedro Bó. A bola tá comigo, eu passo por um, dou um jeito no corpo, passo por outro, um quis me derrubar, eu é que derrubei ele, entro na área, dou o meu chute com o lado do pé, só vejo é a bola balançar as redes.
— Você fez gol.
— Não, Pedro Bó. Fiz friqueque. E você é sua mãe, que eu não lhe dou essa ousadia de me chamar com intimidade.
— Desculpe.
— Pois bom. Não tinha quinze minutos de jogo e o time de Mimoso já estava ganhando por quatro a zero. Três gols meu e um do beque deles que quando me viu ficou tão atanazado que chutou, ele mesmo, pro gol dele. Pra mim — até hoje eu penso isso — aquele beque não sabia que eu estava endefluxado, com uma tossezinha seca, pelo fato de ter dormido sem blusa.
— O senhor já disse isso.
— E digo tantas vezes eu quiser, ainda mais essa. Tá aborrecido com o causo, vá-se embora, não fique aí me cortando o assunto.
Desculpas, pedidos de perdão, promessas de silêncio.
— Pois bom. Aí teve o córner. Quem vai bater o córner?
— O senhor.
— Pra que me dar senhoria, Pedro Bó? Amigo a gente chama de "você".
— Obrigado, mas eu prefiro recusar. O senhor bateu o córner.. .
— De calcanhar, pra debochar. Ora, se já estava quatro a zero, eu faço as minhas brincadeiras. Chutei com o calcanhar, gol!
Pedro Bó pulou como se o gol tivesse acontecido naquele momento. Pantaleão completou.
— E de cabeça. Aí, aquilo que você imagina. Correu o povo todo pra me abraçar.
Ai, Panta, que se não fosse você, o que ia ser da gente, porque você é o tal, Panta. . .
— Muito certo. Todo mundo tinha que abraçar o senhor. Afinal, foi o senhor que deu o passe.
— Eu que fiz o gol.
— Ô xente — espantou-se Pedro Bó. — Mas não foi o senhor que bateu o córner?
— Pedro Bó, por caridade preste atenção no que eu falo. Eu bati o córner, corri pra área, cheguei primeiro do que a bola, pulei mais alto do que o full-back e fiz o gol de cabeça. Entendeu agora?
— Entendi.
— Gol do Brasil — gritou Dona Terta da cozinha. — Gol de Gérson.
Pantaleão suspirou profundo, olhando o longe.
— Gérson. O sobrinho saiu ao tio.
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— HOJE é contra quem?
— Contra a Itália, Pedro Bó. E se nós ganhar, a Copa do Mundo é nossa.
— Eita!
O rádio não tinha um som agradável. Os ruídos de estática eram fortes e praticamente obrigavam a que se adivinhasse o que dizia o locutor. Mas era a última partida do Brasil na Copa, e mesmo naquela cidade perdida nos confins do sertão havia gente que não se interessava por outra coisa que a transmissão da partida.
— Sou Brasil e dou um gol de zura. . . — falou Pantaleão, usando um termo pernambucano que significava "um de vantagem".
— E eu fico sendo Itália?
— Não, Pedro Bó. Joga Brasil contra a Itália. Se eu sou Brasil, tu só pode ser Sergipe. Pedro Bó, vá pra cozinha e só apareça aqui quando eu chamar.
Pedro Bó explicou-se, desculpou-se, jurou calar-se. Queria escutar o relato do jogo, perguntara aquilo por distração.
O dedo de Pantaleão corria no botão do dial, procurando a emissora que lhe desse o som menos péssimo. Desligou.
— Desligou por que, meu velho?
— Ora, ainda mais essa. Eu, Pantaleão Pereira Peixoto, feito um zé-qualquer, perdendo meu tempo querendo escutar jogo de futebol.
— Mas todo mundo tá escutando — argumentou Dona Terta, ainda sem entender a razão pela qual o marido tomara intempestivamente aquela atitude.
— Todo mundo é todo mundo. Pantaleão é Pantaleão. Se eu não soubesse o que é isso, tá certo; se eu nunca tivesse jogado futebol, vá lá. Mas eu, cabra escolado, jogador como até hoje não apareceu um, perder meu tempo escutando besteira.
— E o senhor já jogou, Seu Pantaleão? — falou Pedro Bó, olho arregalado, surpresa visível na cara.
— Taí. Apareceu um que não sabe. Terta, conta pra Pedro Bó o que eu era num campo de futebol. Diz o que eu fazia. Fala pra ele, Terta.
— Pantaleão era danado — foi o que ela disse.
— Danado é esse menino Pelé. Eu era o diabo!
— Pois eu nem sabia — disse Pedro Bó. — Eu lhe juro por essa luz que eu não sabia.
Talvez houvesse outros a não saber. Mas a verdade era esta: Pantaleão Pereira Peixoto jogara, e divinamente. Nunca foi para a seleção porque. . . bem. . .
— ... eles pagavam mal e eu estava acostumado ao meu ordenado de três mil e quinhentos por mês no Esporte Clube Mimoso, da cidade do mesmo nome. Bola pra mim, Pedro Bó, era feito baralho pra cartomante: não tinha segredo. Eu matava nos peito, chutava de banda, de chaleira. Fazia gol de bico e de cabeça, driblava feito o tinhoso. Pois bom. Um dia o time de Mimoso ia jogar contra o time mais danado do sertão de Pernambuco, que era o time de Sertânia, antiga Alagoa de Baixo, um time dos infernos, onde jogava Cabriolé, um preto deste tamanho que tinha um chute de bico que era mesmo que uma facada nos peitos. Eu naquele dia tinha dormido sem blusa, acordei endefluxado, com uma pontinha de febre, uma tosse seca que só faltava cuspir poeira. Falei: "não vou jogar". Pra que eu falei isso? O presidente, os diretores, o técnico do Mimoso só faltaram se desmanchar de pedido. Não faça isso, Panta — que era assim que os menino me chamavam no campo: Panta. Não faça uma desgraça dessas, Panta, que se você não jogar a gente leva uma lavagem. Jogo não, que eu estou endefluxado. Eu até tossia, mode eles ver que não era conversa. Ah, porque se você não jogar o time não entra em campo, o que é que a gente vai fazer lá sem você? Ô xente. Não tem os outro? Tem, mas tudo junto não é metade de você. Panta, Pantinha, você joga, que você não é capaz dessa malvadeza de deixar o time de Mimoso nessa situação. Pois bom. Tanto pediram, tanto imploraram, que eu resolvi jogar.
— Contra o time de Sertânia?
— Não, Pedro Bó. Contra a Rússia. Tire minhas calça e bote o seu calção furado, que eu não vou lhe dar mais essas calça, não. .
— Faça isso não, Seu Pantaleão. Eu perguntei de leseira. Conte o causo. O senhor foi jogar.
— Pois bom. Pra mim tem duas coisa que eu faço questão que seja justa: é faca na bainha e chuteira no pé. Não é que me deram a chuteira do Pompílio, que calçava 43?
— E o senhor calça quanto?
— 39 e meio, mas sendo 40, eu botando uma palmilha, até fica bonzinho. Pois bom. O meu pé dançava dentro da chuteira. Eu ainda calcei o bico com algodão, pra ver se a bicha ficava mais acochadinha, mas não tinha jeito. Eu disse: "vai assim mesmo; nunca tive luxo, não é agora que eu vou ter". E o jogo era em Sertânia. Campo lotado, não cabia nem pensamento ensebado. Na viagem de Mimoso pra Sertânia o caminhão virou e dois jogador nosso quebraram a perna na altura do joelho. Não tinha outros pra botar no campo, eu já tinha tomado uma duas cachaças valente — que naquele tempo eu bebia que só Buick — falei: a gente joga com nove que não faz mal.
— Nove jogador?
— Não, Pedro Bó. Nove bailarina. E acabou-se a estória.
Pedro Bó teve que ir buscar Pantaleão na estrada, pedir perdão de joelhos para convencê-lo a voltar ao alpendre, à cadeira de balanço, ao restante do causo, que era, realmente, majestoso.
— Pois bom. Entramos em campo, foi uma vaia do cavalo-do-cão. O pessoal do meu time começou a tremer, eu cheguei a um por um e fiz eles se acalmar, o negócio era comigo, eu ia resolver, mesmo estando endefluxado, porque eu estava com uma pontinha de febre, pelo fato de ter dormido sem blusa. Pois bom. Joga o níquel para cima, eu fico de cá, vocês de lá, deram a saída, aquela gritaria do povo, a bola vai pra banda de quem?
— Do senhor.
— Pode me chamar de você, Pedro Bó. A bola tá comigo, eu passo por um, dou um jeito no corpo, passo por outro, um quis me derrubar, eu é que derrubei ele, entro na área, dou o meu chute com o lado do pé, só vejo é a bola balançar as redes.
— Você fez gol.
— Não, Pedro Bó. Fiz friqueque. E você é sua mãe, que eu não lhe dou essa ousadia de me chamar com intimidade.
— Desculpe.
— Pois bom. Não tinha quinze minutos de jogo e o time de Mimoso já estava ganhando por quatro a zero. Três gols meu e um do beque deles que quando me viu ficou tão atanazado que chutou, ele mesmo, pro gol dele. Pra mim — até hoje eu penso isso — aquele beque não sabia que eu estava endefluxado, com uma tossezinha seca, pelo fato de ter dormido sem blusa.
— O senhor já disse isso.
— E digo tantas vezes eu quiser, ainda mais essa. Tá aborrecido com o causo, vá-se embora, não fique aí me cortando o assunto.
Desculpas, pedidos de perdão, promessas de silêncio.
— Pois bom. Aí teve o córner. Quem vai bater o córner?
— O senhor.
— Pra que me dar senhoria, Pedro Bó? Amigo a gente chama de "você".
— Obrigado, mas eu prefiro recusar. O senhor bateu o córner.. .
— De calcanhar, pra debochar. Ora, se já estava quatro a zero, eu faço as minhas brincadeiras. Chutei com o calcanhar, gol!
Pedro Bó pulou como se o gol tivesse acontecido naquele momento. Pantaleão completou.
— E de cabeça. Aí, aquilo que você imagina. Correu o povo todo pra me abraçar.
Ai, Panta, que se não fosse você, o que ia ser da gente, porque você é o tal, Panta. . .
— Muito certo. Todo mundo tinha que abraçar o senhor. Afinal, foi o senhor que deu o passe.
— Eu que fiz o gol.
— Ô xente — espantou-se Pedro Bó. — Mas não foi o senhor que bateu o córner?
— Pedro Bó, por caridade preste atenção no que eu falo. Eu bati o córner, corri pra área, cheguei primeiro do que a bola, pulei mais alto do que o full-back e fiz o gol de cabeça. Entendeu agora?
— Entendi.
— Gol do Brasil — gritou Dona Terta da cozinha. — Gol de Gérson.
Pantaleão suspirou profundo, olhando o longe.
— Gérson. O sobrinho saiu ao tio.
ANÍSIO, Chico, 1931 - É mentira, Terta? estórias e causos. |
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liniers!
foto: Luiziana Fernandes
minha querida amiga Luiziana me deu um presentão e entregou um pabulagem#1 pro Liniers lá na Rio Comicon 2011.
:D
Ah! É Caça-Ratô!
depois de um tempão, voltei a fazer uma ilustra pro Blog do Santinha (texto de Gerrá da Zabumba)
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